O texto a seguir é um relato da Cerimônia de Reconhecimento e Investidura do Régulo Henrique Lucas Malenda produzido pelas professoras Cristina Wissenbach (da USP) e Vanicléia Silva Santos (da UFMG), ambas coordenadoras dos Projetos de Mobilidade Internacional CAPES / AULP 2013 – 2015 com a Universidade Eduardo Mondlane.
Cerimônia de Reconhecimento e Investidura do Régulo Malenda
No dia 09 de novembro, a convite e acompanhadas pelo professor Joel Tembe, da Universidade Eduardo Mondlane e do Arquivo Histórico de Moçambique, participamos da “Cerimônia de Reconhecimento e Investidura do Régulo Henrique Lucas Malenda”, na vila de Matchia, Salamanga, distrito de Matutuíne, cerca de duas horas do porto de Catembe, em frente à Maputo.[1] Essa cerimônia faz parte de rituais de investidura de líderes comunitários entre os povos da região de Moçambique, bem como dos países vizinhos da África do Sul e Suazilândia, que foram incorporados pelo governo colonial português a partir de 1929, tendo sido extintos durante os primeiros anos do governo pós-Independência. Em 2000, o Decreto 15/2000 voltou a reconhecer formalmente as chefias ou as chamadas autoridades comunitárias. Na região de Matchia, o novo régulo faz parte da família dirigente dos Malenda, tendo esse lugar sido ocupado anteriormente por seu avô e depois seu pai, Pedro Malenda, investido na década de 50.
A cerimônia oficial que assistimos foi composta por fases distintas. Iniciou-se com uma primeira parte de orações e relatos da história dos Malenda, seguida por um momento de “evocação, exaltação e heroicização” do contemplado feito pelo régulo Jeque Madjadjane, chefe tradicional de 1º escalão e pertencente ao grupo Tembe. Depois disso seguiu-se a investidura propriamente dita, dirigida pelo secretário, Jhonison Malo, e pela chefe do distrito de Matutuíne, Amélia Tembe, durante a qual foram atribuídos a ele as várias insígnias de poder, faixa, galões, cinto, medalha e o quepe (reconhecidos como “símbolos da República”, nos termos do art. 5º do decreto citado). À cerimônia oficial vieram as ofertas de presentes e doações ao novo régulo e, por fim, uma apresentação artística e um grande banquete para todos os participantes sob o patrocínio do régulo Henrique Lucas Malenda.
O chefe do cerimonial, apresentador e também o responsável pela tradução do ronga,[2] língua local, para o português, o professor Abel Eduardo Machango, técnico da área de cultura da Repartição de Cultura, Juventude e Desporto, de Bela Vista, explicou que se tratava de uma festividade importante, mas atualmente rara por conta dos altos custos de sua realização. Para se ter uma noção deles, só para o banquete foram servidos três bois, 4 cabritos, dezenas de frangos, além de grandes travessas de arroz, saladas, legumes, chima, uma grande variedade de bebidas, refrigerantes, sucos, água mineral e litros de whisky de diversas marcas.
A cerimônia foi realizada no terreiro da fazenda (machamba), onde nasceu Lucas Malenda, de propriedade do seu pai, o chefe Pedro Mucubuze Malenda e de sua mãe Mariana Síbia. Alem do espaço coberto onde se oficializou a cerimônia, havia outros compartimentos reservados às autoridades, aos visitantes, aos parentes (com destaque para as mamas com suas lindas capulanas, jóias e celulares importados), e por fim, um lugar destinado às famílias da comunidade, com muitas crianças e mulheres ostentando suas capulanas novas. Essa ordem foi mantida (discretamente para nós os de fora) por ocasião da refeição; no entanto, a primeira oferenda ao novo régulo foi levada por um dos membros desse último grupo.
As oferendas merecem ser detalhadas. Os participantes da festa e dos seus vários segmentos (inclusive nós) levaram ao novo régulo doações em dinheiro ou em produtos, roupas (terno, gravata, camisas), capulanas, caixas de refrigerantes e cervejas, farinha de milho branco para chima, objetos de decoração para casa, com destaque para dois cetros e duas grandes cadeiras que passaram a ser usados depois na continuidade da cerimônia. Ao final foi feita uma apresentação de um grupo de dança Xigubo de Bela Vista, seguindo as danças dos antigos guerreiros e comum a toda a região do Matutuine.
A narração da história dos Malenda, “os seguidores do sol desde onde nasce até onde se põe” como nos disse o professor Abel ao explicar o sentido do termo, teve um lugar importante nas festividades. Segundo o orador, os Malendas chegaram vindos de territórios atualmente localizados na África do Sul e foram recebidos pelo chefe Malhalhane, dos Tembe, que por meio do casamento de sua filha com o chefe dos recém-chegados, concedeu a eles partes de suas terras, dos terrenos que haviam sido ofertados anteriormente por Tembe a seu filho Maputo. Daí a importância da presença no cerimonial de sábado do tio paterno do régulo, vindo de África do Sul, Jabulane Kambula (Malenda), e a reunião de parentelas que a colonização dividiu nas fronteiras artificiais dos países da África Austral.
Na ordem, da esquerda para a direita: Vanicléia Santos (UFMG), Cristina Wissenbach (USP), Valdir Alves (UFRB), o diretor do Colégio Técnico Agrícola de Salamanga, Lucas Malenda (novo régulo), Joel Tembe (UEM), Rui Laranjeira (ISARC), Fabiana Mendes (UNICAMP)
[1] Da viagem participaram além das autoras e do prof. Joel Tembe, Fábia Barbosa Ribeiro (UNIFESP), Fabiana Mendes (UNICAMP), Valdir Alves (UFRB), todos realizando seus respectivos trabalhos de pesquisa em Moçambique, além de Rui Laranjeira, professor do ISARC.
[2] A língua ronga é usada atualmente por quase 800.000 pessoas em Moçambique e África do Sul, sendo junto ao changana, as mais faladas na parte sul de Moçambique.